Justiça de SP reclassifica como homicídio doloso e manda para Tribunal do Júri caso de marceneiro negro morto por PM de folga
11/07/2025
(Foto: Reprodução) Guilherme Dias morreu no último dia 4 após levar um tiro na cabeça disparado pelo policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida na Zona Sul de SP. À direita, o PM Fábio Almeida, que matou por engano Guilherme, de 26 anos
Reprodução/TV Globo
A Justiça de São Paulo acatou o pedido do Ministério Público do estado nesta sexta-feira (11) e reclassificou a morte de Guilherme Dias, marceneiro negro assassinado por um policial de folga, como homicídio doloso (quando há a intenção de matar). O caso será encaminhado ao Tribunal do Júri.
O jovem morreu em 4 de julho após levar um tiro na cabeça disparado pelo policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, em Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo. O marceneiro corria para pegar o ônibus de volta para casa, cerca de minutos após bater o ponto de saída no trabalho.
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A Promotoria questionou a tipificação inicial feita pela autoridade policial como homicídio culposo com legítima defesa (quando se supõe estar em risco). Segundo ela, esta análise não pode ser feita fora do Tribunal do Júri, que é o órgão competente para esse julgamento.
“O que não se admite é que se suprima do Tribunal do Júri, cuja competência foi constitucionalmente delimitada, a avaliação de caso tão evidente de crime doloso contra a vida", escreveu a promotora Claudia Ferreira Mac Dowell, justificando o pedido de redistribuição do caso para o Tribunal do Júri.
O juiz Diogenes Luiz de Almeida Fontoura Rodrigues, da 2ª Vara Criminal do Foro Regional II - Santo Amaro, acolheu o pedido do MP e, em sua decisão, determinou a imediata redistribuição dos autos para uma das Varas do Júri do Foro Central, ordenando o cumprimento com urgência.
O tio de Guilherme, Roberto Souza, afirmou nesta sexta (11) ao g1 que a família da vítima tem esperanças de que a justiça será feita.
"Estamos esperançosos que a justiça será feita e que polícias como este deixem de vestir a farda da Polícia Militar. E também que o governador tome uma atitude mais enérgica com casos desse tipo. Não vamos desistir de lutar para colocar esse indivíduo na cadeia", disse Souza.
Entenda o caso
No boletim de ocorrência, o PM alegou que teria confundido o jovem com um assaltante. Ele afirmou que pilotava uma moto pela Estrada Ecoturística de Parelheiros quando foi abordado por suspeitos armados que tentaram roubar a motocicleta. Na versão do agente do 12° Batalhão de Polícia Militar Metropolitano, ele teria reagido com disparos e, durante a confusão, um dos tiros acertou Guilherme.
Na ação, uma mulher, que estava no ponto de ônibus, foi atingida de raspão por um disparo. Fábio chegou a ser preso em flagrante por homicídio culposo após o crime, mas pagou fiança de R$ 6,5 mil e foi liberado. Ele foi afastado do serviço operacional. A defesa do policial disse que não vai se manifestar e irá aguardar o andamento das investigações.
Na segunda-feira (7), o coronel Emerson Massera, chefe de comunicação da Polícia Militar do Estado de São Paulo, afirmou que o agente que atirou na cabeça e matou o marceneiro cometeu um "erro de avaliação".
PM diz que policial de folga cometeu 'erro de avaliação' ao atirar marceneiro
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) disse que o policial responde a inquérito conduzido pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Segundo a SSP, a gestão investe na qualificação das forças de segurança e atualização dos protocolos de operação.
"Durante a formação, todos cursam disciplinas de Direitos Humanos que abordam o combate ao racismo, à violência de gênero e a outros crimes de intolerância. Além disso, a Polícia Militar integra o grupo de trabalho 'Movimento Antirracista – Segurança do Futuro', coordenado pela Universidade Zumbi dos Palmares, voltado à construção de uma segurança pública mais equitativa e inclusiva", afirmou.
Quem era Guilherme Dias
Ao g1, a prima Larissa Souza, de 28 anos, contou que Guilherme havia comemorado o aniversário no último fim de semana de junho — ele completou 26 anos. Primos, os dois moravam no mesmo quintal e cresceram com os outros quatro irmãos do jovem.
"A gente costumava sair juntos e fazer programação em família. Quando íamos à praia, a gente juntava a família toda. Recentemente, fomos para Peruíbe [litoral de SP]. Ele foi com a esposa, e eu estava presente", relembrou Larissa.
Guilherme e Larissa eram primos e cresceram no mesmo quintal, em Parelheiros, SP
Arquivo pessoal
Conhecido entre colegas e familiares pelo comprometimento com o serviço e pela dedicação à família, o jovem atuava como marceneiro em uma fábrica de móveis há quase três anos.
Ao g1, Roberto Souza, tio de Guilherme, ressaltou que a família era muito unida e que se reunia frequentemente em momentos de fé e lazer.
"Nossa relação é muito próxima. Todo feriado que tem, a gente reunia a família com o Guilherme, a gente dava risada, a gente fazia churrasco. A gente cantava hinos, louvores, falava da palavra [de Deus], fazia jogos bíblicos, assim que era a nossa vida. Era não, ainda é porque tem que continuar. Mas com um vazio", disse.
Segundo ele, o sobrinho estava ajudando a programar o aniversário de 70 anos da avó. "A gente não sabe como que vai ser sem ele. Ela está muito abalada, já é o segundo neto que ela perde. O meu irmão perdeu um nenê recém-nascido recentemente. E agora é o Guilherme."
No velório, realizado no domingo (6), em Parelheiros, amigos da igreja cantaram e homenagearam o marceneiro. "É só ver quantas pessoas estiveram. Ele era muito querido pela comunidade. É só olhar as imagens do velório."
No velório, realizado no domingo (6), em Parelheiros, amigos da igreja cantaram e homenagearam o marceneiro.
Arquivo pessoal
Guilherme estava no segundo dia de trabalho após retornar das férias. Segundo relatos de sua família, ele costumava seguir sempre a mesma rotina: do trabalho para casa, da casa para a igreja, e da igreja para o trabalho.
"Nunca se envolveu com nada, era do serviço para casa, da casa para a igreja. Era sempre assim", contou à TV Globo Sthephanie dos Santos Ferreira Dias, viúva de Guilherme.
Na noite do crime, o marceneiro havia acabado de bater o ponto e avisou a esposa que estava indo embora. Ele mesmo publicou no status do WhatsApp uma foto do relógio de ponto à saída do trabalho.
A morte de Guilherme causou revolta e tristeza entre familiares e amigos. Sthephanie atribuiu a reação do policial ao racismo estrutural presente no caso.
Só porque é um jovem negro, preto e estava correndo para pegar o ônibus, [ele] atirou. O que é isso? Que mundo é esse? Era o único jovem preto que estava no meio [do ponto] e foi atingido. A gente quer esse policial na cadeia, ele tem que pagar. Está solto, pagou a fiança que, para ele, não é nada.
"Nunca se envolveu com nada. Era sempre assim, estava na casa dos pais ou em casa. Ele não é isso o que o povo está falando", desabafou a esposa.
Guilherme e Sthephanie completariam dois anos de casados em agosto. Eles tinham o sonho de ter filhos e planejavam viajar para comemorar a data.
"O sonho dele era ser pai. A gente estava fazendo tratamento para poder gerar um filho", contou a mulher.
"Ele estava pagando o carro dele, tirando a carteira de motorista e ia começar as aulas práticas. Também estava pretendendo conseguir um emprego melhor para sair mais cedo e receber melhor."
Na mochila, Guilherme carregava apenas um livro, marmita, talheres e a roupa de trabalho. Pouco antes do crime, ele avisou a esposa que já estava indo embora.
"Deu 22h e eu dormi, e do nada acordei às 2h. Olhei meu WhatsApp e tinha mensagem dele: 'Estou indo embora'. Às 22h38. [Eram] duas e meia da manhã e ele não tinha chegado. Ele nunca foi de chegar tarde em casa, sempre chegou no horário. Se ocorresse alguma coisa, ele me avisava", disse.
O policial militar foi afastado do serviço operacional. Procurada, a defesa dele disse que não vai se manifestar e irá aguardar o andamento das investigações.